Escassez de água no cerrado põe em risco abastecimento de todo o país

Verdadeira caixa d’água no coração do Brasil. É assim que o cerrado é visto por especialistas ligados aos recursos hídricos do país. Considerado um berço das águas, o bioma da região central brasileira possui grande importância estratégica para o abastecimento e manutenção de uma rica biodiversidade.

Na última reportagem da série especial sobre o bioma que cerca o Distrito Federal, especialistas destacam a importância das águas cerratenses para o abastecimento e manutenção da biodiversidade brasileira.

Uma verdadeira caixa d’água no coração do Brasil. É assim que o cerrado é visto por especialistas ligados aos recursos hídricos do país. Considerado um berço das águas, o bioma da região central brasileira possui grande importância estratégica para o abastecimento e manutenção de uma rica biodiversidade. Com grandes reservas subterrâneas de água doce, o cerrado faz conexões ao norte, com a Amazônia; ao nordeste, com a Caatinga; a sudoeste, com o Pantanal; e a sudeste, com a Mata Atlântica, o que faz com que haja importantes relações ecológicas entre ele e os biomas vizinhos.

De acordo com o Museu do Cerrado, iniciativa da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FA/UnB), o cerrado possui 19.864 nascentes, 23,6% de todas as nascentes brasileiras, além de três grandes aquíferos: Guarani, Bambuí e Urucuia. Mas, a riqueza hídrica requer mais cuidados: uma vez que distribui água por todo o país, a escassez na região afeta o Brasil. Na última reportagem da série especial sobre o cerrado, especialistas advertem quanto às ameaças nascentes e rios da região.

Diretor-presidente da organização não-governamental (ONG) Fundação Pró-Natureza (Funatura), Braulio Ferreira de Souza Dias explica que a importância hídrica do cerrado vai além das chuvas abundantes que recebe no verão. “Os solos profundos e rochas porosas do bioma mantêm importantes lençóis freáticos, que garantem a perenidade dos rios na estação seca e aquíferos que abastecem de água muitas cidades brasileiras e permitem a irrigação de áreas de produção agrícola”, explica. As chuvas e os rios perenes do bioma também são cruciais para a renovação das águas dos reservatórios das principais hidrelétricas do país, respondendo pela maior parte da energia elétrica consumida no Brasil.

Apesar da abundância de água no bioma, a região sofre com períodos de redução de chuvas, tanto que a população do DF precisou conviver com racionamento e rodízio no consumo de água nos anos de 2017 a 2019. “Infelizmente existe muito desperdício de água no DF. Além do recente racionamento de água, estamos observando um processo de rebaixamento do lençol freático em muitas áreas, devido ao excesso de retirada de águas dos poços artesianos — claramente estamos consumindo mais água do que temos”, alerta Braulio.

Caso a tendência não seja revertida, o pesquisador ressalta que a população deverá enfrentar, em um futuro próximo, maior escassez de água, tanto para consumo urbano quanto para consumo na área rural. “Infelizmente, se as taxas de desmatamento no cerrado e na Amazônia não forem reduzidas drasticamente, assim como o consumo e desperdício de água no DF, vamos enfrentar nas próximas décadas uma forte redução nas chuvas, secas mais longas, mais rebaixamento nos lençóis freáticos e o retorno do racionamento e do rodízio na disponibilidade de água”, adverte.

Como prevenção, Braulio reforça a importância dos esforços de proteção das unidades de conservação que protegem os principais mananciais, redução da retirada de água dos poços artesianos e restrição drástica de autorização para a abertura de novos poços.

Crise hídrica

O uso de água nos sistemas humanos para irrigar cultivos e abastecer cidades e indústrias é enorme, além de, normalmente, acompanhado de altos índices de desperdício. De acordo com o biólogo e doutor em ecologia Raphael Igor Dias, o porte e ritmo de crescimento populacional do DF, a ocupação desordenada do território e o uso desregulado dos recursos hídricos são aspectos essenciais para o entendimento da última crise hídrica enfrentada pela cidade. “Esses pressionam fortemente o bioma, gerando impactos negativos para a diversidade e para os processos ecossistêmicos”, afirma.

O cerrado, destaca Raphael, é adaptado à enorme sazonalidade e consequente variação anual na disponibilidade de água. “É um bioma de enorme importância para a segurança hídrica do país. No DF, especificamente, estão localizadas nascentes que alimentam algumas das principais bacias hidrográficas do Brasil. Essa não é uma questão apenas relacionada à água superficial, o bioma é extremamente importante para garantir, também, o abastecimento de grandes aquíferos”, pondera.

O risco de uma nova crise hídrica é uma realidade no país e no mundo. Algumas ações importantes foram tomadas no DF para reduzir as chances de novas crises. No entanto, mudanças mais profundas são necessárias e elas envolvem questões econômicas, sociais e uma reflexão sobre o comportamento da população, conforme explica Raphael. Atualmente, o DF é abastecido principalmente por duas barragens: a do Descoberto e a de Santa Maria. “Esses reservatórios são responsáveis por abastecer cerca de 90% da população. No momento, segundo os dados da Agência Reguladora de águas, Energia e Saneamento do DF (Adasa), a situação desses reservatórios está tranquila”, afirma. De acordo com o Sistema de Monitoramento do Nível de Reservatórios, a Barragem do Descoberto está com o volume útil de 87,3%; e a de Santa Maria, em 95,5%.

“Deve haver um comprometimento com a legislação ambiental. O poder público precisa fiscalizar e autuar possíveis irregularidades em relação ao uso dos recursos hídricos, à supressão de vegetação nativa e a ocupação do solo”, adverte. “Os setores que são os principais responsáveis pelo elevado uso dos recursos hídricos, como as atividades agrícola e industrial, devem buscar soluções para reduzir e otimizar a utilização da água. Por outro lado, a população também deve contribuir, adotando um comportamento mais sustentável”, completa Raphael.

Melhorias

Apesar dos mais de 100 dias sem chuvas, atualmente, a situação dos recursos de água é confortável. Segundo o diretor da Adasa, Jorge Werneck, o estado de alerta na capital trouxe conscientização aos consumidores. Além disso, gerou uma série de melhorias na gestão dos recursos hídricos do DF e nas infraestruturas dos principais reservatórios que abastecem a população.

Hoje, o consumo per capita no DF é de aproximadamente 140 litros por habitante/dia, mas o recomendado pela Organização Mundial da Saúde é de que o consumo diário seja de 110 litros por habitante/dia. “O DF tem, hoje, uma resiliente segurança hídrica, bem maior do que antes da crise hídrica. Atualmente, alcançamos a melhor marca da história para este período, mesmo com mais de 100 dias sem chuvas”, afirma o diretor.

A capital faz ligação com três importantes regiões hidrográficas brasileiras que são: Tocantins/Araguaia, São Francisco e Paraná. O diretor explica que o DF está em uma região alta e central e que funciona como um guarda-chuva para essas regiões. “Pelo fato de ser uma região de nascentes, os rios são pequenos”, explica.

Mas, o crescimento desordenado da população nas áreas urbanas traz uma certa pressão em relação à quantidade de água disponível para a população. “O ordenamento territorial deve respeitar o ordenamento ecológico-econômico. O Rio Melchior, principal afluente do Rio Descoberto, é um dos rios comprometidos pelo crescimento, sem um planejamento adequado da população, o que compromete a qualidade da água”, explica.

Jorge Werneck também alerta para o uso correto do solo do cerrado. “É necessário manter o equilíbrio da vegetação natural e preservar a biodiversidade. A Adasa disponibiliza um sistema de informações sobre recursos hídricos para os grandes usuários”, conclui.

FONTE: Correio Braziliense

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